Rute Ribeiro nos presenta la figura de Henrique Delgado, precoz investigador portugués, a cuya importante figura le ha dedicado un libro, publicado a finales de 2011 por el Museu da Marioneta de Lisboa. En este artículo se cuenta la auténtica obesión que llevó Delgado a realizar , en pocos años, descubrimientos importantísimos para la historia de los títeres en Portugal, y la ingente tarea de divulgación a la que se consagró. Publicamos la versión original del artículo en portugués. Versión en español en PDF.

Henrique Delgado con Teófilo

Há já mais de cinco anos que dedicamos todos os minutos livres da nossa vida à actividade marionetística. Poderá ser ridículo dizê-lo, mas a verdade é que acordamos e deitamo-nos a pensar em fantoches. Isto é que constitui uma obsessão.

Henrique Delgado (1)

No panorama da história do teatro de marionetas em Portugal Henrique Delgado é uma figura incontornável. Grande investigador desta arte, à qual dedicou todo o seu tempo a estudar e a escrever sobre vários tópicos. Os seus artigos são extremamente importantes e constituem uma verdadeira referência, uma vez que, sem o seu incansável e minucioso trabalho, ter-se-ia perdido para sempre um conjunto de informações fundamentais para a análise do teatro de marionetas português.

Mas quem foi Henrique Delgado? A primeira vez que ouvi o seu nome tinha quinze anos, e encontrava-me no antigo Museu da Marioneta, quando ainda se situava em Alfama, numa visita escolar, acompanhada pela minha turma. Lembro-me de me ter sido dito que tinha sido um importante historiador da marioneta em Portugal. Não sei o motivo, mas fiquei sempre muito curiosa por aquela figura.

Anos mais tarde, como marionetista e estudiosa do teatro de marionetas, pude aprofundar a qualidade do seu trabalho no espólio existente no Museu da Marioneta de Lisboa, gentilmente cedido pelos seus familiares.(2) Este revela em absoluto o seu valor e dedicação ao estudo do teatro de marionetas, não só como investigador, mas também como criador. Infelizmente, a sua morte prematura, quando tinha apenas 33 anos, vítima de um tumor cerebral, impediu a continuação dos seus estudos e uma perda que podemos mesmo afirmar como irreparável para o teatro de marionetas em Portugal.

Um dos aspectos que rapidamente causa um grande impacto é a quantidade de material produzido em tão pouco tempo, sensivelmente entre 1964 e 1971, onde aborda vários aspectos de interesse filológico, etimológico, etnológico e sociológico. Salienta-se ainda o seu esforço em divulgar o teatro popular português nacional e internacionalmente. O que também revela o quão diferente poderia ter sido o cenário do teatro de marionetas português, desde a sua morte até à actualidade e, antes de mais o quanto se perdeu, principalmente no que diz respeito a repertórios, marionetas e respectiva investigação.

Henrique Luís das Neves Delgado nasceu a 22 de Fevereiro de 1938 em Lisboa. Em 1963 inicia o seu trabalho nos serviços administrativos na CAL – Companhia das Águas de Lisboa, actual EPAL, sob a orientação de Henrique Trindade, um apaixonado pelo teatro de marionetas, que estava empenhado no desenvolvimento artístico e cultural da Casa do Pessoal da referida empresa, que se tornará seu amigo e colaborador e o fará interessar-se pelo teatro de marionetas, com a fundação do grupo de fantoches Robertoscope, uma iniciativa dirigida ao público infantil.

Henrique Delgado colabora na organização deste grupo de carácter amador, onde desempenhou múltiplas tarefas, como o desenho e pintura de cartazes, cenários, adereços, construção de cabeças de marionetas, em madeira e em pasta de papel, de marionetas de luva, para além da criação de textos originais.

Neste contexto, fica incumbido de fazer uma investigação sobre marionetas, com os objectivos de adquirir mais conhecimentos técnicos e, simultaneamente, enriquecer a biblioteca da respectiva Casa do Pessoal. A organização dessa biblioteca especializada com diversos volumes e em vários idiomas, possibilitou-lhe o estudo aprofundado da teoria e a técnica do teatro de marionetas.

Bastante entusiasmado, uma vez que já nutria um grande interesse por esta área, inicia, às suas próprias custas, um exaustivo trabalho de investigação e divulgação, participando em inúmeras iniciativas.

No final de 1967 criou e dirigiu o Teatro Lilipute, cuja estreia, favoravelmente acolhida pela crítica, ocorreu em Janeiro de 1968 com a peça “O Rei Ardeu” e que contou com a colaboração literária do jornalista, escritor e crítico Mário Castrim (1920-2002), autor do texto.

No entanto, a sua grande influência no desenvolvimento e estudo do teatro de marionetas é realizada através dos inúmeros artigos que publica na imprensa da época. O seu primeiro artigo foi publicado quando tem 26 anos, no jornal A Voz de Moçambique, de 7 de Março de 1964, com o título “Títeres e Marionetas. Dois espectáculos populares”, onde já aborda e defende a importância do teatro de marionetas, que deve também ter o seu lugar de honra ao lado dos actores de carne e osso.

As descobertas
O período de investigação desenvolvido sobre teatro de marionetas e os marionetistas populares portugueses incide principalmente entre o final de 1966 até à sua morte, em 1971. Delgado começa por se encontrar com o bonecreiro popular António Dias (3) (19?-1986) que participara nas filmagens de Dom Roberto (1962), realizado por José Ernesto de Sousa (1921-1988). Ao saber por António Dias da existência de pavilhões de feira, onde se exibiam marionetas de luva e de fios, fica completamente surpreso, pois nem sequer imaginava que existiam marionetas de fios em Portugal.

Alguns dias depois descobre a existência, até então quase desconhecida, dos Bonecos de Santo Aleixo, pelas descrições que o etnomusicólogo Michel Giacometti (1929-1990) lhe faz, quando o contacta por necessitar de consultar documentação sobre a história do teatro de marionetas europeu. A partir daqui inicia-se verdadeiramente a sua investigação, à qual dedica todo o seu tempo, desenvolvendo um verdadeiro trabalho de campo, numa busca exaustiva pelos marionetistas populares portugueses. Mas não foi fácil ganhar a sua confiança e convencê-los a falar das suas experiências, desconfiados e fervorosos defensores dos seus segredos. Percorre milhares de quilómetros, muitas vezes por povoações em que a única forma de aí chegar, seria por mota ou bicicleta, envia dezenas de cartas e consulta inúmeros documentos, para além de criar uma importante biblioteca pessoal, mas sempre consciente de ainda estar longe de ter resultados absolutos.

Em 1967 tornar-se-á responsável pela secção “Bonifrates” na revista portuguesa Plateia,(4) com reportagens sobre teatro de marionetas e importantes entrevistas realizadas aos vários marionetistas que encontra, devido às suas pesquisas, revelando desta forma a sua arte ao grande público.

Um grande trabalho de divulgação

Henrique Delgado, colaborou episodicamente em inúmeras publicações portuguesas, como, por exemplo: Autores, Vértice, Vida Mundial, Seara Nova, O Comércio do Porto, O Século Ilustrado, República, Diário de Lisboa, Diário Popular, A Capital, O Século, Diário de Notícias, Flama e A Voz de Moçambique, entre outros.

Ao lermos os seus artigos conseguimos sentir a sua ansiedade e preocupação, Henrique Delgado sente que Portugal era ainda “um autêntico museu vivo do teatro de fantoches tradicional” (5) e que está perante uma oportunidade única de dar a conhecer toda esta realidade, mas que também se encontra numa corrida contra o tempo, pois vive numa época de transição, em que os antigos bonecreiros tradicionais portugueses estavam a desaparecer e, com eles, terminava também um estilo de vida, um repertório que passara oralmente de geração em geração e um conjunto histórico de centenas de marionetas. Esta obsessão e frustração pela falta de apoios irão persegui-lo continuamente.

Paralelamente escreve sobre a história do teatro de marionetas ou o perfil de vários marionetistas que desenvolviam projectos artísticos e pedagógicos, como Lília da Fonseca (6) ou Lena Perestrelo, entre outros. Tenta também, sempre que possível, realizar entrevistas a marionetistas estrangeiros que actuavam em Portugal, como, por exemplo, Philippe Genty.

É importante salientar que muitos dos artigos que publica não são pagos, mas estas iniciativas fazem parte dos seus objectivos principais, que encara como uma verdadeira missão, divulgar e contribuir para o conhecimento do teatro de marionetas português, em Portugal e no estrangeiro.

Neste sentido e com um grande espírito de iniciativa, começa por enviar numerosas cartas para diversos marionetistas, especialistas e investigadores de teatro de marionetas de todo o mundo, com os quais estabelece e mantém um contacto regular. Nessas cartas envia ainda por diversas vezes colecções de fotografias de marionetistas portugueses, com especial incidência nos Bonecos de Santo Aleixo, e a recepção é extremamente positiva, quer seja pela publicação de artigos seus ou pelo desejo manifestado de visitarem Portugal, como lhe expressa, por exemplo, George Speaight (1914-2005).

Um retrato destes mesmos aspectos, é a importante correspondência que mantém com os mais importantes marionetistas e investigadores mundiais do teatro de marionetas como A. R. Philpott (1904-1978), George Speaight, Hans R. Purschke (1911-1986), Paul-Louis Mignon ou Jan Bussel (1909-1985), entre outros.

Artigos de sua autoria são publicados em diversas revistas e jornais estrangeiros, principalmente sobre os Bonecos de Santo Aleixo, em torno dos quais desenvolve importantes investigações, despertando a curiosidade de diversos marionetistas e investigadores estrangeiros que chegam a visitar Lisboa, como Dan Kirchner, director do Puppetry Theatre of South Africa ou Daya Samaratunga, do Sri Lanka. O que permitiu a divulgação internacional do teatro de marionetas português, à época muito pouco conhecido. O seu pai, Luís Neves Delgado, refere a publicação de artigos em “dezasseis revistas e jornais editados em onze países”, para o que contribuía o conhecimento de Henrique Delgado de vários idiomas.(7)


Do local
e o global

Em 1968 tornou-se membro da British UNIMA e da UNIMA France, tornando-se colaborador e correspondente de diversas revistas da UNIMA, da revista Puppet Post, dirigida por Philpott, pertencente à Associação inglesa Educational Puppetry Association (EPA), na The Puppet Master: the Journal of British Puppet and Model Theatre Guild, nas revistas alemãs Perlicko-Perlacko e Figurentheater, entre outras.

Na correspondência trocada com Philpott (8) está retratado o esforço que faz por manter uma investigação condigna e as suas dificuldades. Nesta amizade, que é reforçada em cada carta, Henrique Delgado partilha as contrariedades sociais e políticas da época e a opressão sentida pelo regime português então vigente, o Estado Novo, que paralisava a cultura e condicionava em absoluto a liberdade artística. Revelando o quão difícil era a vida artística em Portugal, o problema da censura, que proibia, por exemplo, a representação da peça O Judeu do dramaturgo Bernardo Santareno (1920-1980), de quem é amigo, e chega mesmo a comparar a vida dos intelectuais em Portugal à de António José da Silva, o Judeu.(9)

Muito importantes são também os seus trabalhos sobre os pavilhões ambulantes de marionetas de feira. Quando toma conhecimento da sua existência realiza vários artigos sobre Manuel Rosado (1909-19?), que chegou a ser detentor de um pavilhão com “6 x 22 metros”, e Joaquim Pinto (1899?-1968). Pelas suas entrevistas conhecemos uma vivência já desaparecida de famílias que viajavam pelo país, de feira em feira, com a apresentação de espectáculos de marionetas de luva e de fios e a utilização de orquestras.

Numa das suas visitas a Manuel Rosado, Delgado descobre um palco para marionetas, muito singular e prático, sobre o qual publica um artigo na Plateia e também na revista alemã Perlicko-Perlacko.(10) O espólio da colecção de marionetas de Manuel Rosado encontra-se no Museu da Marioneta e é verdadeiramente impressionante.(11)

Nos artigos sobre Joaquim Pinto, que morre pouco tempo depois, percebe-se o quão importante foi o conjunto de marionetas que pertenceu à sua família, durante várias gerações e que, infelizmente, se perdeu a maior parte, bem como os respectivos repertórios.

Os artigos sobre os Bonecos de Santo Aleixo são em número considerável. É um verdadeiro deleite saborear as entrevistas à equipa “original” dos Bonecos, a Manuel Jaleca (1893-1976) ou a Talhinhas António (1909-2001), bem como a discrição de serões cheios de camponeses a assistirem às suas representações, que chegariam a ter a duração de cinco ou mesmo oito horas. Fará ainda uma recolha de parte do seu repertório e será incansável na divulgação nacional e internacional deste peculiar agrupamento.

Escreve também sobre bonecreiros populares, que se apresentavam em feiras, praças, ruas e praias, onde podemos observar os problemas e as dificuldades em que muitos vivem. Mas também conhecemos Clarinda de Azevedo, uma mulher marionetista que sabia utilizar a palheta! Henrique Duarte, irmão de Joaquim Pinto, ou ainda Augusto Sérgio, com uma curiosa “guarita” triangular que acenderá a curiosidade de Henrique Delgado, mas também de George Speaight ou Tom Howard, como refere numa carta enviada a Philpott.

No plano da história do teatro de marionetas, são ainda de assinalar as suas contribuições nas investigações sobre “bonifrates de capa” e de “títeres de porta”, com o envio de imagens para Hans R. Purschke, para além dos seus últimos estudos, que incidiram sobre a origem da palavra portuguesa “bonifrate”.

Uma carreira interrompida

Para além destes aspectos, Henrique Delgado defende a utilização do teatro de marionetas nas escolas e, para além de impulsionar algumas iniciativas, chega mesmo a realizar cursos de marionetas. É novamente inovador, pois em Portugal pouco se tinha feito neste domínio, para além de serem raríssimos os livros dedicados a esta arte. Por isso um dos seus desejos era fazer um manual de teatro de marionetas.

No final de 1969 recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para o estudo do teatro de marionetas e respectiva actividade em Portugal. O seu plano de trabalho reflecte a seriedade da sua investigação: realização de três monografias, uma sobre a actividade dos Bonecos de Santo Aleixo, outra sobre a actividade dos teatros de marionetas de feira e uma terceira sobre a actividade dos teatros de marionetas não populares, relativas ao período dos últimos cem anos. Pretendia ainda organizar um álbum com fotografias de marionetistas, marionetas, palcos e outros materiais; fazer o registo do repertório tradicional; para além da elaboração de um dicionário de marionetistas.

Henrique Delgado previra que toda esta tarefa estaria completa no final de 1971, infelizmente a sua doença não tornou possível a concretização deste projecto.(12) A notícia da sua morte é noticiada em publicações portuguesas e estrangeiras, que em comum têm o facto de revelarem a tristeza por esta morte prematura e as suas dramáticas consequências para a história do teatro de marionetas português.

O escritor português António Torrado, em entrevista gentilmente concedida, falou das suas memórias de Henrique Delgado, encarando-o como um investigador, que via o seu trabalho como um verdadeiro cientista, muito meticuloso, exigente para o qual vivia totalmente dedicado, de uma forma quase obsessiva. O seu trabalho espelha o retrato de uma época e de um homem singular, à frente do seu tempo, que desejava liberdade criativa e desenvolver a arte das marionetas em Portugal, mas que, antes de mais… respirava e vivia para o teatro de marionetas.


Notas:

(1) Delgado, Henrique – Plano de trabalho para um ano de actividade (inédito) – “Fontes para uma história dos Bonifrates”, primeiro volume (espólio de Henrique Delgado – Museu da Marioneta).

(2) O espólio de Henrique Delgado chegou até à actualidade devido à dedicação imensurável da sua família e, muito em especial, da sua mãe Maria Eugénia Delgado, e da sua filha Maria José Delgado que doou o espólio de seu pai ao Museu da Marioneta. Um agradecimento especial ao Museu da Marioneta pela consulta e cedência de imagens para este artigo e por ter tornado possível a realização de uma publicação sobre Henrique Delgado.

(3) Um dos mais célebres marionetistas populares, que transmitiu a sua experiência e saber a João Paulo Seara Cardoso (1956-2010), director artístico do Teatro de Marionetas do Porto, que o acompanhou no final da sua carreira e recreou parte do seu repertório.

(4) Revista portuguesa sobre espectáculos, principalmente de teatro e cinema, que existiu entre 1951 e 1986.

(5) Preâmbulo (inédito) – “Titereiros Portugueses” (espólio de Henrique Delgado – Museu da Marioneta).

(6) Lília da Fonseca (1906-1991): escritora e criadora do Teatro de Branca-Flor. Para mais informações consultar Ribeiro, Rute; Branca-Flor: o Teatro de Lília da Fonseca (1962-1982); Lisboa, Museu da Marioneta/EGEAC, 2007.

(7) Delgado, Luís Marques; “Palavras de um pai”, em Fontes para uma história dos Bonifrates, primeiro volume (espólio de Henrique Delgado – Museu da Marioneta).

(8) Esta correspondência integra o espólio de Henrique Delgado no Museu da Marioneta.

(9) António José da Silva, o Judeu (1705-1739). Dramaturgo português, morto pela Inquisição. As suas óperas com marionetas apresentadas no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, conheceram à época um grande sucesso.

(10) Delgado, Henrique; Kapuzen-Puppenspieler, p. 15 (1970).

(11) Para além de outros marionetistas “revelados” por Henrique Delgado.

(12) Na correspondência trocada com Philpott, Delgado confidenciará ainda que desejava publicar um livro em inglês sobre o teatro de marionetas tradicional, intenção muito apoiada por Philpott e chega mesmo a entrar em contacto com Tom Howard (director do Chelsea Puppets Theatre Group e membro dirigente do British Puppet and Model Theatre Group e da Secção Inglesa da UNIMA) com este propósito. Mais um projecto que a sua morte prematura não o deixou concretizar.

Ribeiro, Rute; Henrique Delgado: contributos para a história da marioneta em Portugal. Lisboa: Museu da Marioneta/EGEAC, 2011.

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